sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Contextos do Ensino da Arte na Bahia: a capoeira como manifestação cultural.



Por Jailton Santóz

A abordagem do ensino da arte no Brasil, na contemporaneidade visa o desenvolvimento cultural do educando para o exercício da cidadania, de forma crítica e consciente dos seus direitos e deveres na sociedade. De acordo com a mais recente Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9.394/96 – Parágrafo 2º: “O ensino da arte constituirá componente curricular obrigatório nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover a educação cultural dos alunos.” Neste sentido, este texto resgata um breve relato histórico da capoeira na Bahia enquanto dança, luta e jogo, para falar de manifestação cultural baiana agregando ao ensino da arte em sua tríade educativa de produção, fruição e conhecimento, como elemento de aprendizagem relevante ao contexto sociocultural do educando baiano, buscando o ensino de sua própria cultura para entender o seu significado social, educativo, artístico e cultural.

Ana Mae Barbosa concebe o desenrolar do processo ensino/ aprendizagem em arte de forma triangular, inserindo o fazer, o ver e o contextualizar para que o entendimento sobre a arte na escola não caia na estética vazia originada pelo histórico imediatista da Educação Artística² na década de 1970, e que seja suprimida a visão preconceituosa de que tudo que é arte é meramente prático e não cognitivo.

Fazer arte está inerente à prática de criação, porem, sempre num viés teórico. Na sala de aula, esta abordagem busca uma direção para o desenvolvimento poético pessoal do aluno, para que ele compreenda o fazer arte como um mecanismo de expressão de valores, crenças, sentimentos e comunicação. Ver arte é usufruir arte, é analisar, criticar, compreender, associar, relacionar. É o momento da fruição de uma peça de teatro, dança, música e/ou artes visuais. Contextualizar arte é agregar conhecimento, é compreender a presença da arte nas diversas áreas do saber, como na História, Filosofia, Psicologia, Sociologia dentre os demais campos de aprendizagem em que a arte está inserida. Neste texto, eu me apropriei destas três premissas educativas em arte de Barbosa para o conhecimento prático, analítico e conceitual da capoeira, com base numa outra tríade abordagem relacionando a Capoeira Angola, Capoeira Regional e Capoeira Contemporânea na Bahia para uma degustação teórica adaptada ao que se pretende alcançar no ensino da arte, especificamente na Bahia, terra rica em cultura.

Este texto é um recorte de um artigo que desenvolvi como requisito para avaliação da disciplina de Diversidade, Identidade Cultural e Inclusão Social da minha Especialização em Arte-Educação: Cultura Brasileira e Linguagens Artísticas Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia / Escola de Belas Artes, que em seu desenrolar discutimos acerca da diversidade, identidade cultural e inclusão social no contexto de unidade e particularidades (a totalidade e suas aberturas), contextualizando conceitos de linguagens, racismo, sexismo, movimentos sociais, africanidade, dentre estes a capoeira, como manifestação cultural e patrimônio imaterial do Brasil. O tema relacionado à capoeira foi desencadeado pelos professores da pós-graduação e a relação com a arte-educação foi adaptada por mim, levando em consideração a capoeira por ser arte, por ser educação e por serem as duas coisas ao mesmo tempo. Eu como arte-educador e artista baiano não teria como não falar sobre a capoeira enquanto registro cultural e artístico bem presente na Bahia. Nada seria mais conveniente para mim do que escrever sobre arte enquanto manifestação cultural, envolvendo a capoeira como um dos seus recortes de relevância significativa para o contexto da arte-educação baiana.

Segundo o Inventário Para Registro e Salvaguarda da Capoeira Como Patrimônio Imaterial do Brasil, realizado entre 2006 e 2007, a presença da capoeira no Brasil predomina nos estados da Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco. Seu aparecimento no Brasil é justificado pela manutenção das tradições africanas praticadas pelos escravos desde o período anterior a abolição da escravatura. Carlos Eugênio Líbano Soares (1999) salienta que a capoeira não é apenas “uma prática cultural excludente de negros libertos ou livres, mas a uma tradição rebelde que tinha fortes raízes escravas... e ‘seduzia’ aqueles de outra condição social e jurídica, por sua maneabilidade e resistência”. Neste sentido a capoeira fica visivelmente inerente ao contexto da escravidão, distante de ser apenas uma dança, luta e/ou jogo meramente tradicionais dos povos africanos escravizados no Brasil.

A capoeira é considerada uma manifestação multifacetada pelos seus diversos vieses culturais, representados pela arte da dança enquanto prática de criação de movimentos corporais rítmicos, seguido de música, produzida por melodia e/ou canto. A ideia de luta enamora os sentidos de combate, rivalidade, oposição e concorrência. As habilidades físicas de gestual forte e resistente relacionados aos “golpes” dos braços e pernas evidenciam uma visão guerrilheira em que a arma é próprio corpo. Quando visualizada pela perspectiva de jogo, a capoeira ganha um aspecto semelhante ao de luta, em que ambos trazem como consequência ganho e perda, porem o termo “guerrilha” não se aplica, pelo conceito do que seja jogo. A ideia de jogo casa com o momento devocional que a capoeira também proporciona.

A relação da capoeira com momentos devocionais é expressa na proposta da Capoeira Angola, os sentidos de combate, oposição, força física evidenciam-se de forma mais explícita na Capoeira Regional. A Capoeira Angola tem uma característica mais lenta em seu ritmo musical, golpes jogados mais baixos e bastante malícia. Maria de Lourdes Siqueira (1998), em suas abordagens sobre a cultura do Candomblé, destaca aspectos de cidadania, liberdade e identidade vinculados à religiosidade. Neste sentido, identifico semelhança com a Capoeira Angola pela sua “dimensão cultural em sentido profundo representa um âmago sobre o qual se constroem processos de formação de pessoas e novas formas de organização social, e novos modos de saber e de viver em sociedade.”.

A Capoeira Regional tem uma característica mais peculiar ao sentido do combate, visando unir a malícia da Capoeira Angola com o jogo rápido de movimentos, ao som do berimbau. Os golpes são ágeis e severos, e as performances corporais da Capoeira Angola deixam de existir. O Inventário Para Registro e Salvaguarda da Capoeira como Patrimônio Imaterial do Brasil acrescenta que “... a capoeira regional dará destaque à eficiência do combate marcial, misturando movimentos da capoeira antiga, conhecida como capoeira angola, com o batuque, e principalmente incorporando movimentos de ataque e de defesa de outras artes marciais, como o jiu-jitsu. Modificações que promoveram a capoeira regional como uma singular e eficiente arte marcial de origem brasileira.”.

A Capoeira Regional surge para buscar uma quebra com a ideia do capoeira marginal e vagabundo para compreender o capoeira como um atleta saudável e disciplinado.

Uma terceira “capoeiragem” é chamada de Capoeira Contemporânea, praticada com base em apropriações da Capoeira Angola e Regional que surge entre os anos 30 e 80 do século passado. “Esta modalidade ainda não possui um nome consensual entre os capoeiristas. Uns preferem chamá-la “capoeira contemporânea”, outros “capoeira de vanguarda”, e há ainda os que a nomeiam como “capoeira atual” ou, simplesmente, “capoeira hegemônica”. (INVENTÁRIO PARA REGISTRO E SALVAGUARDA DA CAPOEIRA COMO PATRIMÔNIO IMATERIAL DO BRASIL, 2007, p. 47).

Este texto trás como reflexão a valorização e ressignificação do ensino sobre a capoeira na escola enquanto produção cultural, por meio do ensino da arte, disciplina responsável pelo desenvolvimento cultural do indivíduo.

O processo da educação no Ensino Básico depende de diversos campos de aprendizagem, desde os conhecimentos da educação doméstica, que atribuo ao senso comum, até a aprendizagem escolar, que vinculo ao senso científico. A relação entre escola e família é um fator de suma importância para que a formação do indivíduo seja efetivamente cidadã, crítica e reflexiva na sociedade contemporânea.

A educação escolar é regida pela aplicabilidade teórica e/ou prática das áreas do conhecimento divididas entre Linguagens, Códigos e Suas Tecnologias, Ciências Humanas e Suas Tecnologias, Ciências da Natureza e Suas Tecnologias e Matemática e Suas Tecnologias. Na área de Linguagens, especificamente, comportamos o ensino da Arte em todos os seguimentos da educação básica, de acordo com a LDB de 1996, com o objetivo de desenvolver a educação cultural dos alunos por meio da arte, ou seja, ensinar cultura enquanto arte desde o contexto sociocultural do educando até as demais culturas nacionais e internacionais. Neste sentido, o professor de Arte, residindo e ensinando Arte na Bahia, tem por premissa básica a integração fazer arte, ver arte e contextualizar arte, acolhendo às suas aulas os ensinamentos sobre a arte da Bahia que se desdobra em um universo de artefatos da produção material e imaterial de artistas e práticas da cultura baiana em que a arte está presente.

A capoeira é uma das manifestações artísticas do Brasil com marcos históricos significativos na Bahia. O termo se aplica ao conceito de arte por não ser apenas luta e jogo, em seu mosaico cultural encontramos a presença das linguagens artísticas denominadas de dança e música, que tem uma relevância macro nos atributos da capoeira, principalmente na Capoeira Angola. Neste sentido a capoeira ganha um aspecto criativo e propriamente artístico.

A relação da capoeira com a arte não se restringe apenas a dança e a música, quando me refiro estas duas referências a princípio, proponho uma relação com a Capoeira Angola, mas de modo geral é possível identificar também a presença da artes visuais e do teatro na capoeira.

Acredito numa relação da capoeira com as artes visuais no viés da construção plástica dos instrumentos musicais, por exemplo, o berimbau em seu contexto pictórico em que as cores e formas pintadas dão “vida” estética ao instrumento e expõe visivelmente a oferta de diversidade que a capoeira tem. As artes visuais de forma bem peculiar tem também esta característica de usar a estética, o visível para expor a sua mensagem. Seguindo esta ordem de pensamento consigo transpor uma coisa a outra. O teatro, que é a arte de representar e que compõe as artes cênicas juntamente com a dança e a arte circense está presente na capoeira pelo próprio ato cênico desta luta, representando mestres, capoeiristas e o público espectador. Outra característica teatral na capoeira é o ato da “apelidagem” dos pratricantes desta arte.

Sendo cultura relacionada à arte, a capoeira ganha um espaço na sala de aula por meio da arte-educação. O professor de Arte além de contextualizar a capoeira em seus aspectos conceituais, históricos, filosóficos e culturais pode agregar também as práticas de produção da capoeira na escola, promovendo encontros entre alunos e capoeiristas, ou mesmo internalizando o conhecimento prático e técnico da capoeira em academias específicas onde às aulas são oferecidas para uma ministração experimental da prática da capoeira. A compreensão da capoeira na prática é importante não apenas pela fixação da aprendizagem teórica, mas pela oportunidade de vivência nesta arte, sendo também para o educando uma experiência para a vida. Outra abordagem muito importante acontece no momento da fruição da capoeira, ou seja, a apreciação crítica e reflexiva desta prática, estimulando a percepção do aluno para cada cena, cada gesto, expressão, diferenças e semelhanças. Em sala de aula é possível desenvolver este fruir por meio de mostras de vídeos, apreciação de fotos e tutoriais, numa situação extraclasse, visitas a escolas de capoeira ou mesmo as rodas ao ar livre pode ser uma ótima experiência de aprendizagem.

Um dos maiores descasos que temos no Brasil, especificamente na Bahia é o semi-analfabetismo cultural de grande parte das pessoas. Numa pequena pesquisa que fiz ano passado e faço todos os anos nas turmas em que leciono na educação básica, apenas vinte e cinco alunos de nove turmas com cerca de quarenta a quarenta e cinco discentes cada, visitaram um museu alguma vez na vida. O que mais me surpreende não é apenas este lamentável número de pessoas, mas o notável desinteresse por parte dos alunos em conhecer a arquitetura histórica da cidade, as igrejas de estéticas barrocas e rococós, os centros culturais, teatros, exposições de artes visuais nas diversas instituições de cultura e patrimônios materiais e imateriais de um modo geral. Outra situação é quando perguntamos a alguém da nossa família ou até mesmo aos nossos amigos “o que é arte para você?” E geralmente as respostas se restringem a arte como atividade manual, decoração, criatividade e liberdade apenas, esquecendo a dimensão teórica e cognitiva que a arte tem no sentido da pesquisa e da busca de sua proposta poética. O senso comum sobre a arte, na produção artística ou no seu ensino, ainda no Brasil é privatizado à ideia de inspiração, intuição e rebeldia. Neste sentido, a escola se transforma em uma plataforma deste senso comum quando o professor de Arte não transmite e nem respira bem a disciplina no seu ofício, deixando de revelar por sua vez, o real papel da arte na educação. Outro questionamento curioso é “cite um exemplo de uma obra de arte” e em muitos casos, de imediato, a resposta vem limitando ser obra de arte as pinturas e esculturas, marginalizando as letras de músicas, os poemas e os roteiros de filmes enquanto obras de arte.

O conhecer cultura e arte em sua essência ainda me parece estar longe da realidade intelectual dos brasileiros, seja por ignorância ou mesmo pelo desmerecimento ou desprestígio dos cargos que a cultura e a arte ocupam neste país, e é dever do Poder Público e dos profissionais do ensino da arte esta transformação social.

O ensino da arte é um recorte do conhecimento sobre cultura e cabe ao professor de Arte conhecer a cultura relacionada à arte nos diversos aspectos de sua licenciatura, em artes visuais, música, dança ou teatro.  Se arte-educação significa epistemologia da arte, as práticas de ensino de cada professor de arte deve desenvolver uma epistemologia específica de acordo com a sua formação, e é importante sempre estabelecer relações interdisciplinares com as diversas linguagens artísticas e as diversas áreas do conhecimento. A disciplina de Arte tem os seus conteúdos próprios e tem também diversas possibilidades de diálogos e interfaces com outros campos de aprendizagem. O bom desempenho nas aulas de Arte dependerá muito mais do professor propositor, do que qualquer outro personagem pedagógico.

Que se mantenha viva a chama do coração dos arte-educadores deste país, que acreditam e sonham com mudanças, e lutemos por esta causa pois ainda há um caminho longo pela frente.

Obrigado pela leitura e até aproxima discussão!