Por Jailton Santoz
"As práticas de ensino de Arte apresentam níveis de qualidade tão
diversificados no Brasil que em muitas escolas ainda se utiliza, por exemplo,
modelos estereotipados para serem repetidos ou apreciados, empobrecendo o
universo cultural do aluno." PCNs 1998
Venho de uma inquietação no que diz respeito às práticas
conservadoras do ensino de Arte direcionado a cópia / reprodução, que
infelizmente ainda existe no contexto de nossas aulas de arte do Ensino Básico no
Brasil. Na construção da releitura da obra de arte existem procedimentos a
serem seguidos e cabe ao professor a responsabilidade de mostrar a positividade
de uma releitura valorizando essa atividade ao trabalho criador e não
reprodutor.
Nada contra as recriações que se sustentam numa releitura de
uma pintura ou escultura, mas o que se torna inviável é quando essa prática
limita o horizonte criativo e perceptivo do aluno. Em uma experiência minha, no
meu período de estágio supervisionado acompanhei o trabalho de uma professora
de Arte de uma escola pública que em grande parte de suas atividades práticas
em sala de aula era a apropriação da bendita releitura da obra de arte, e além
do trabalho repetitivo e de forma incentivadora da “cópia” e limitação criadora
a professora utilizava como modelo imagens de obras de Tarsila do Amaral, o Abaporú, diga-se de passagem, era o mais
escolhido pela turma. Num certo dia eu me autoquestionei por que a repetição
das mesmas obras na prática pedagógica dessa professora era tão grande e
perguntei a ela o porquê de limitarem-se apenas as pinturas de Tarsila... Ela
me respondeu: “Eu acho melhor trabalhar com essas imagens por que são mais
simples, são mais fáceis pra eles trabalharem...”. Eu, decepcionado com a
situação pensei: É... Além da releitura infrutífera, tem mais esse problema,
por que a visão é que os alunos são meros reprodutores da arte e não tem a
capacidade, por exemplo, de reler uma obra de Velázquez...
Baseado nesses questionamentos eu criei um fórum de debates
incluindo opiniões de quatro arte-educadores para saber qual a visão dos mesmos
sobre essa prática, iniciei o debate da seguinte forma:
- Existem formas positivas de enxergar uma
releitura, claro, mas ela é negativa quando se torna uma prática e quando se
apropria apenas de composições digamos com traços mais simples e
"fáceis" de reproduzir, preconceituando o aluno com inatingível
avanço criativo...
Jamilson de Sousa - Acredito que a releitura
quando praticada por um estudante do Enino Fundamental é válida, más que isso
não deva se aplicar a profissionais de arte, a simplicidade na composição da
forma e cores de quadros modernistas, cubistas, abstracionista geométricos,
alguns impressionistas, entre outros é o que torna possível ao estudante melhor
perceber as utilizações de variações cromáticas e auxilia no desenvolvimento da
coordenação e poder de reprodução de um estudante, Velázquez é renascentista,
trabalha com realismo e gradientes pictórios, a menos que seja um profissional,
não haverá exito harmonioso nem de forma nem de cor. Pessoalmente não gosto de
releituras de obras de artes visuais, prefiro usar a apropriação de obras
literárias e abordar a capacidade de criação e de representação de idéias, isso
só é possível também por uma série de exercícios e aulas sobre a obra literária
e sobre diversas técnicas artísticas.
- Então Jamilson... Entendo sua colocação e agradeço pela contribuição
nessa discussão, mas a questão aqui explorada não é viabilizar uma releitura
para entender questões técnicas das cores ou formas, mas sim desmerecer uma
reprodução que limita a possibilidade de criar do aluno, até por que existem
milhões de meios para entender questões sobre cor e por que usar justamente uma
releitura? E quando eu falei de Velázquez, é por que muitos professores de Arte
não acredita no potencial do aluno e por ser uma obra mais
"complexa".
Jamilson de Sousa - É isso merece uma
conferência, tudo que aprendemos parte do princípio básico da comunicação, esta
é uma releitura, só sabemos o que sabemos por que nos foi apresentado essa
realidade e produzimos a partir da expressão dessas experiências de
aprendizado, além disso, a utilização de uma obra numa releitura não a
desmerece ou a inferioriza, muito pelo contrario, mostra sua força quanto
objeto questionador e o torna mais popular, e de certo eu te digo, se mostrarmos
uma pintura da Tarcila e do Velázquez a um estudante há mais possibilidade dele
conhecer a primeira e há uma série de fatores a isso. Claro, é uma opinião
profissional pessoal, e embora eu não faça prática da releitura de obras
artísticas, não condeno a quem faça, apenas acredito que esse exercício pode
ser melhor substituído por outras atividades, como você mesmo disse, nem o
grito, ou a monalisa, ou o abaporú, possui essência menor que arte, e nem deixa
de ser a mesma pelas releituras. Isso merece uma discussão mais profunda, não
pelos certos ou errados, más pelos prós e contras.
- Sim, Jamilson de Sousa... Realmente seria muito mais completo esse debate
se nos fosse permitido à oportunidade de uma "conferência" como você
disse, para colocarmos pontos nos Is ou não, mas acredito na riqueza cognitiva
que uma discussão virtual pode causar. Então... Eu não sei se você leu logo
acima o que falei sobre a positividade da releitura, mas, mais uma vez faço
questão de dizer que o que torna negativo é quando a releitura não tem nenhum
fim criador, fato presente em muitas escolas nas aulas de Arte, infelizmente. E
em relação ao entender que releitura é releitura por que "aprendemos"
a partir da produção e expressão de experiências, digo que não necessariamente,
até por que pra eu saber que "cair" machuca eu não preciso cair e me
machucar para entender isso. E para conhecer uma obra de Tarcila, Velázquez ou outro
pintor, não é necessário ter que reler uma obra de cada um deles. Eu também não
condeno quem pratica a releitura erroneamente, quem sou eu pra condenar, apenas
lembro-me das práticas vazias em arte da década de 60, e mais uma vez a questão
aqui também não diminui ou inferioriza obra de artista nenhum, até por que o
assunto é outro. Claro que a releitura vai dar essa possibilidade de
aprendizado, mas existem muitas outras metodologias de aprendizagem para tanto. De forma alguma desmereço e
/ ou desconheço qual quer possibilidade positiva que uma releitura pode
oferecer, mas sou desfavorável quando é a arte por arte e fico triste quando o
professor não passa para os alunos o porquê estudar arte, por que é preciso
conhecer arte e simplesmente defende uma prática como essa sem uma correlação
consistente.
Sebastião Miranda Filho - Olá Jailton! Tudo bem?
Acredito que essas discussões temáticas sejam um bom exercício de pensar a
arteeducação, por outro lado vejo que nem sempre é possível reduzir assuntos
complexos neste formato de comunicação: deu vontade de estarmos conversando
longamente sobre o tema talvez sentados diante da capelinha do Unhão (Museu de
Arte Moderna da Bahia), numa roda de colegas bem propositores. Leitura e
Releitura merecem ser bem esmiuçadas como estratégias de apreensão e
desenvolvimento do saber e do saber fazer Arte, mas dependem mesmo do educador
generoso e não apressado - você tem toda razão!
Verdade Sebastião...Tudo bem sim. O meu desejo também seria este, poder discutir essa
"problemática" de uma forma presencial até por que é um tema bem
propositor, mas enquanto isso não acontece vamos explorando esses assuntos por
aqui mesmo (risos). E como você falou sobre o "desenvolvimento do saber e
saber fazer arte" é algo complexo para professores que desconhecem o
conceito e significado da arte e simplesmente entendem a arte como objeto
pronto (o belo) e não como proposta.
Cássio Almeida - A releitura torna-se exercício do olhar. Acredito
no envolvimento da maneira abordada, possibilitando reflexões em vários
territórios, independente da obra utilizada nesta proposição, a meu ver, a
escolha deverá partir de um contexto de uma relação. Infelizmente muitos
professores associam releitura com cópia /reprodução, inclusive quando fui
lecionar pela primeira vez numa turma de fundamental I, na concepção de muitos
alunos releitura seria reprodução, portanto a minha responsabilidade de mudar
essa posição foi intensa. No entanto gosto bastante de fazer uma ponte/transpor
para o contemporâneo. Quanto à questão das obras literárias, que fora citada
como um instrumento de releitura, também uma possibilidade riquíssima, diálogo
com verbal e não verbal, veículos que se contemplam a todo momento. Já usei
poesias de Manoel de Barros para processo de criação, uma releitura do poema
por meio da linguagem visual. As releituras nos surpreendem! Abraços a todos!
- Com certeza Cássio! Obrigado também pela contribuição. Eu sou 100%
favorável quando a apropriação da releitura é para fazer pontes como nessa
citação referente às obras literárias, quando proporcionará algo criador. Sou
contra quando ela se torna uma prática de reprodução, como você disse: “isso é
um conceito de muitos alunos” quando a releitura visa à cópia e não trás
nenhuma experiência artística. Não consigo enxergar uma releitura de uma
pintura ou escultura como não veículo de reprodução ainda que isso vá causar
mudanças, algo que vá diferenciar, até por que não existem duas pinturas iguais,
mas de certa ou errada forma a limitação criadora vai acontecer, a ponto de
“ter” que seguir a mesma temática, limitar-se a imagem que está a frente.
Cássio Almeida - Entendo Jailton Jack com seu ponto de vista. A
Releitura é uma discussão bastante complexa, na história da arte, vejamos
inúmeras inspirações, irei citar a obra "A Dança" de Matisse, partiu
de inspiração, (na minha análise a vejo como releitura a obra de Lucas Cranach
chamada " Das Goldene Zeitalter"). Como há outros artistas que
procuraram e continua procurando inspirações, outro exemplo, a Obra de Courbet
"A origem do mundo" foi inspiração e ponto de partida para uma
releitura na produção do artista Henrique Oliveira (instalação: A origem do
terceiro mundo) assim questões de criação pode partir de um pressuposto, não
limitando o processo criativo, tais inspirações as vejo como um processo de
releitura, não ocasionado à limitação e sim uma transgressão sustentada por
referências. Um abraço!
- Então Cássio... Achei bacana a fundamentação que você buscou, mas quando
a releitura parte de uma pintura para uma instalação com água, vento e fezes é
uma realidade, de forma que sou totalmente a favor, mas quando está dentro do
contexto escolar e estimula a reprodução dos mesmos traços e cores numa outra
pintura se torna algo bem negativo.
Sebastião Miranda Filho - Acredito que o educador
deva acordar com o grupo da intencionalidade da atividade proposta em cada
momento. A cópia também faz parte da construção do desenhista/pintor e é
importante na passagem da estética infantil para a estética adulta. A Rosa
Iavelberg fala disso muito bem. Mas isso tem que estar amadurecido no educador
como uma possibilidade no uso das reproduções de obras de arte na escola e não
ser sinônimo de leitura e releitura de obras de arte.
- Eu sempre estou aberto a aprender, acho que trocas sempre de alguma forma
são ricas, mas vou discordar pelo reflexo que essas atividades propostas como
"cópia" nos remetem... Como por exemplo, a mera atividade educativa
em arte na década de 60, que se baseava em modelos prontos como via de
reproduções, gerando um trabalho imediatista e sem proposta criadora. Prefiro a
aproporiação de modelos de pinturas, esculturas para a explanação teórica onde
se insere na história da arte e também como elemento estético para apreciação e
fonte de explicação técnica de construção no processo criativo do aluno, sem
que ele precise copiar e sim criar o seu prórprio trabalho.
Cássio Almeida - Eu já presenciei práticas por meio de falas
semelhantes as que foram relatadas. “Cópia também faz parte da construção do
desenhista/pintor", isso na esfera técnica, em ateliês que oferecem
pintura em tela, um mecanismo muito constante, onde encontramos revistas com
produções artísticas em tela, para serem usadas como modelo. De certa maneira
priva a criação. No âmbito escolar a visão de reprodução foi sustentada por
muito tempo, como apontado pelo Jailton Jack. Acredito no nosso intuito como
arte-educadores estimular, propor momentos que promovam a criação por meio da
reflexão, fundamentando a arte, mostrar ao aluno seu papel na sociedade como
agente cultural de seu espaço e suas poéticas.
- Perfeitamente Cássio
Almeida. O problema em muitas práticas em arte na escola é justamente essa, a
ligação direta a oficina de artes plásticas, a direcionado a técnica na
apropriação de modelos prontos. Se nós arte-educadores não soubermos mostrar a
diferença entre arte-educação e oficinas de arte, jamais o ensino de Arte irá
progredir.
Sebastião Miranda Filho - Bem, desculpe discordar, mas
não acho que o arte-educador deva estar somente no ambiente escolar e o artista
educador nos ateliês de arte - não acredito como arte-educador que este formato
de escola com mais de 30 alunos por sala anime qualquer ação educativa em arte,
então prefiro os espaços educativos fora das escolas com arte-educação. Eles
estão nas ruas, nos centros culturais, nos museus, nos ateliês, e até nas
escolas, desde que não tratando pessoas no atacado como se apresenta na maioria
das vezes.
Jamilson de Sousa - A escola não forma o
aluno, o profissional em arte educação sim. Adorei o papo.
- Então meu querido Sebastião Miranda Filho... O que eu coloquei acredito
ter sido muito claro, quando eu me refiro ao trabalho de arte-educação que em
sua proposta vai além de criações e releituras como em oficinas que se torna
algo mais "prático" e imediatista "acadêmico". Acho que
educar em arte não se limita a uma sala de aula, é claro, os museus,
exposições, o cemitério, a urbanização existe
“para isso”, para arte-educar buscando uma extenção além do contexto escolar.
Estou muito feliz com esse debate por que gera crescimento, mostra a
criticidade de cada um e quanto as diferentes opiniões sou favorável por que
todos nós tivemos uma formação e cada um a digeriu de uma forma singular.
Sebastião Miranda Filho - Sim Jailton, é isso que
vai deixando cada vez melhores as discussões, parabéns por propô-las. O que eu
dizia quanto a preferir rodas de conversas presenciais, é que nelas poderiamos
localizar estas diferenças conceituais com mais clareza. Concordo desde o
início do mau uso das releituras como são feitas na sua descrição; ninguém
merece copiar as mesmas Tarsilas simplesmente por copia-las. Sabemos das
infinitas possibilidades de abordagens na arte educação a partir de uma boa
reprodução de obra de arte ou de um original. Acho que o mau uso acontece
quando o educador não tem bom repertório de leitura e exploração da leitura com
o grupo antes de propor a releitura, incentivando esse exercício com toda a
liberdade de criação apoiada por esses repertórios conceituais proprios da
releitura, como a apreensão, a citação, a intertextualização e quando for o
caso a cópia.
- Exatamente Sebastião!
Márcio Prado - Interessante observar os pontos positvos e
negativos nas tentativas de inserir o aluno através de variadas práticas...
Como bem colocado antes os modelos estereotipados limitam a criação do aluno,
gosto da releitura na arte-educação com o objetivo claro de deixar
automaticamente na zona de criação, sobre releituras de Velázquez... Gostei
muito do que o colega Jamilson falou e concordo com ele de que haveria
dificuldades no exito harmonioso de forma e de cor. Meus parabéns a todos pelas
colocações, li e achei todos os comentáros muito ricos.
- Meu querido Márcio Prado, meu amigo e ex-colega de faculdade, obrigado
também pela contribuição nesse debate riquíssimo, estou muito feliz com a
repercussão dessa discussão. Então... Eu estou ciente de que o mundo é formado
por diferentes opiniões, a final se não fosse assim não haveria criticidade.
Mas vou de encontro com você quando diz que concorda com "haveria
dificuldade no exito hamonioso de forma e cor" acreditando que a releitura
proporciona essa situação, não que a prática de reler uma obra não proporcione
tal experiência, mas por que não estudar técnicas de cor ou o que seja numa
produção criada pelo próprio aluno? Quero dizer que existem diversas
metodologias para tanto e sendo assim não teria com haver dificuldade alguma,
muito pelo contrário o aluno criando sua própria obra no estudo sobre forma e
cor ele não seria estimulado a reproduzir/ copiar e não deixaria de aprender
essas técnicas em sua prática. Prefiro que a apropriação de uma obra de arte se
direcione a apreciação e leitura estética, ou mesmo estudar questões cromáticas
e técnicas além das referências na história da arte. O mais inquietante que pude
ler nesse debate referente à releitura foi “auxilia no desenvolvimento da
coordenação e poder de reprodução de um estudante” na citação do colega
Jamilson... Gente, coordenação e poder de reprodução se tornam diretamente
utilitarista e imediatista, escapando-lhe a dimensão do criar a partir de sua
poética pessoal, ou seja, dessa forma estamos regredindo a década de 70, 80
voltando para as aulas de “Educação Artística” tempo em que estudar “arte” era
a apropriação de fatores mecânicos que a sociedade desmerecia muito mais do que
nos dias de hoje desconhecendo o valor e a importancia existencial da arte.
Cássio Almeida - Agradeço ao Jailton Jack por propor discussões
tão significativas.
- Eu que agradeço pelo retorno de vocês. Até a próxima!
A intenção proposta aqui é
gerar reflexão principalmente para os professores de arte, os professores de
outras áreas que ensinam arte e para os alunos, que a partir do momento em que
eu deixo de criar, automaticamente deixa-se de produzir arte enquanto proposta.
“A arte começa quando a
imitação acaba.” Oscar Wilde