Por
Jailton Santóz
A abordagem do ensino da arte no Brasil, na
contemporaneidade visa o desenvolvimento cultural do educando para o exercício
da cidadania, de forma crítica e consciente dos seus direitos e deveres na
sociedade. De acordo com a mais recente Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional 9.394/96 – Parágrafo 2º: “O ensino da arte constituirá componente
curricular obrigatório nos diversos níveis da educação básica, de forma a
promover a educação cultural dos alunos.” Neste sentido, este texto resgata um
breve relato histórico da capoeira na Bahia enquanto dança, luta e jogo, para
falar de manifestação cultural baiana agregando ao ensino da arte em sua tríade
educativa de produção, fruição e conhecimento, como elemento de aprendizagem
relevante ao contexto sociocultural do educando baiano, buscando o ensino de
sua própria cultura para entender o seu significado social, educativo,
artístico e cultural.
Ana Mae
Barbosa concebe o desenrolar do processo ensino/ aprendizagem em arte de forma
triangular, inserindo o fazer, o ver e o contextualizar para que o entendimento
sobre a arte na escola não caia na estética vazia originada pelo histórico
imediatista da Educação Artística² na década de 1970, e que seja suprimida a
visão preconceituosa de que tudo que é arte é meramente prático e não
cognitivo.
Fazer arte está inerente à prática de criação,
porem, sempre num viés teórico. Na sala de aula, esta abordagem busca uma
direção para o desenvolvimento poético pessoal do aluno, para que ele
compreenda o fazer arte como um mecanismo de expressão de valores, crenças,
sentimentos e comunicação. Ver arte é usufruir arte, é analisar, criticar,
compreender, associar, relacionar. É o momento da fruição de uma peça de
teatro, dança, música e/ou artes visuais. Contextualizar arte é agregar
conhecimento, é compreender a presença da arte nas diversas áreas do saber,
como na História, Filosofia, Psicologia, Sociologia dentre os demais campos de
aprendizagem em que a arte está inserida. Neste texto, eu me apropriei destas
três premissas educativas em arte de Barbosa para o conhecimento prático,
analítico e conceitual da capoeira, com base numa outra tríade abordagem
relacionando a Capoeira Angola, Capoeira Regional e Capoeira Contemporânea na
Bahia para uma degustação teórica adaptada ao que se pretende alcançar no
ensino da arte, especificamente na Bahia, terra rica em cultura.
Este texto é um recorte de um artigo que desenvolvi
como requisito para avaliação da disciplina de Diversidade, Identidade Cultural
e Inclusão Social da minha Especialização em Arte-Educação: Cultura Brasileira
e Linguagens Artísticas Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia /
Escola de Belas Artes, que em seu desenrolar discutimos acerca da diversidade,
identidade cultural e inclusão social no contexto de unidade e particularidades
(a totalidade e suas aberturas), contextualizando conceitos de linguagens,
racismo, sexismo, movimentos sociais, africanidade, dentre estes a capoeira,
como manifestação cultural e patrimônio imaterial do Brasil. O tema relacionado
à capoeira foi desencadeado pelos professores da pós-graduação e a relação com
a arte-educação foi adaptada por mim, levando em consideração a capoeira por
ser arte, por ser educação e por serem as duas coisas ao mesmo tempo. Eu como
arte-educador e artista baiano não teria como não falar sobre a capoeira
enquanto registro cultural e artístico bem presente na Bahia. Nada seria mais
conveniente para mim do que escrever sobre arte enquanto manifestação cultural,
envolvendo a capoeira como um dos seus recortes de relevância significativa
para o contexto da arte-educação baiana.
Segundo o Inventário
Para Registro e Salvaguarda da Capoeira Como Patrimônio Imaterial do Brasil,
realizado entre 2006 e 2007, a presença da capoeira no Brasil predomina nos
estados da Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco. Seu aparecimento no Brasil é
justificado pela manutenção das tradições africanas praticadas pelos escravos
desde o período anterior a abolição da escravatura. Carlos Eugênio Líbano Soares
(1999) salienta que a capoeira não é apenas “uma prática cultural excludente de
negros libertos ou livres, mas a uma tradição rebelde que tinha fortes raízes
escravas... e ‘seduzia’ aqueles de outra condição social e jurídica, por sua
maneabilidade e resistência”. Neste sentido a capoeira fica visivelmente
inerente ao contexto da escravidão, distante de ser apenas uma dança, luta e/ou
jogo meramente tradicionais dos povos africanos escravizados no Brasil.
A capoeira é considerada uma manifestação
multifacetada pelos seus diversos vieses culturais, representados pela arte da
dança enquanto prática de criação de movimentos corporais rítmicos, seguido de
música, produzida por melodia e/ou canto. A ideia de luta enamora os sentidos
de combate, rivalidade, oposição e concorrência. As habilidades físicas de
gestual forte e resistente relacionados aos “golpes” dos braços e pernas
evidenciam uma visão guerrilheira em que a arma é próprio corpo. Quando
visualizada pela perspectiva de jogo, a capoeira ganha um aspecto semelhante ao
de luta, em que ambos trazem como consequência ganho e perda, porem o termo
“guerrilha” não se aplica, pelo conceito do que seja jogo. A ideia de jogo casa
com o momento devocional que a capoeira também proporciona.
A
relação da capoeira com momentos devocionais é expressa na proposta da Capoeira
Angola, os sentidos de combate, oposição, força física evidenciam-se de forma
mais explícita na Capoeira Regional. A Capoeira Angola tem uma característica
mais lenta em seu ritmo musical, golpes jogados mais baixos e bastante malícia.
Maria de Lourdes Siqueira (1998), em suas abordagens sobre a cultura do
Candomblé, destaca aspectos de cidadania, liberdade e identidade vinculados à
religiosidade. Neste sentido, identifico semelhança com a Capoeira Angola pela
sua “dimensão cultural em sentido profundo representa um âmago sobre o qual se
constroem processos de formação de pessoas e novas formas de organização
social, e novos modos de saber e de viver em sociedade.”.
A
Capoeira Regional tem uma característica mais peculiar ao sentido do combate,
visando unir a malícia da Capoeira Angola com o jogo rápido de movimentos, ao
som do berimbau. Os golpes são ágeis e severos, e as performances corporais da
Capoeira Angola deixam de existir. O Inventário
Para Registro e Salvaguarda da Capoeira como Patrimônio Imaterial do Brasil
acrescenta que “... a capoeira regional dará destaque à eficiência
do combate marcial, misturando movimentos da capoeira antiga, conhecida como
capoeira angola, com o batuque, e principalmente incorporando movimentos de
ataque e de defesa de outras artes marciais, como o jiu-jitsu. Modificações que
promoveram a capoeira regional como uma singular e eficiente arte marcial de
origem brasileira.”.
A
Capoeira Regional surge para buscar uma quebra com a ideia do capoeira marginal
e vagabundo para compreender o capoeira como um atleta saudável e disciplinado.
Uma
terceira “capoeiragem” é chamada de Capoeira Contemporânea, praticada com base
em apropriações da Capoeira Angola e Regional que surge entre os anos 30 e 80
do século passado. “Esta modalidade ainda não possui um nome consensual
entre os capoeiristas. Uns preferem chamá-la “capoeira contemporânea”, outros
“capoeira de vanguarda”, e há ainda os que a nomeiam como “capoeira atual” ou,
simplesmente, “capoeira hegemônica”. (INVENTÁRIO PARA REGISTRO E SALVAGUARDA DA
CAPOEIRA COMO PATRIMÔNIO IMATERIAL DO BRASIL, 2007, p. 47).
Este
texto trás como reflexão a valorização e ressignificação do ensino sobre a
capoeira na escola enquanto produção cultural, por meio do ensino da arte,
disciplina responsável pelo desenvolvimento cultural do indivíduo.
O
processo da educação no Ensino Básico depende de diversos campos de
aprendizagem, desde os conhecimentos da educação doméstica, que atribuo ao
senso comum, até a aprendizagem escolar, que vinculo ao senso científico. A
relação entre escola e família é um fator de suma importância para que a
formação do indivíduo seja efetivamente cidadã, crítica e reflexiva na
sociedade contemporânea.
A
educação escolar é regida pela aplicabilidade teórica e/ou prática das áreas do
conhecimento divididas entre Linguagens, Códigos e Suas Tecnologias, Ciências
Humanas e Suas Tecnologias, Ciências da Natureza e Suas Tecnologias e
Matemática e Suas Tecnologias. Na área de Linguagens, especificamente,
comportamos o ensino da Arte em todos os seguimentos da educação básica, de
acordo com a LDB de 1996, com o objetivo de desenvolver a educação cultural dos
alunos por meio da arte, ou seja, ensinar cultura enquanto arte desde o
contexto sociocultural do educando até as demais culturas nacionais e
internacionais. Neste sentido, o professor de Arte, residindo e ensinando Arte
na Bahia, tem por premissa básica a integração fazer arte, ver arte e
contextualizar arte, acolhendo às suas aulas os ensinamentos sobre a arte da
Bahia que se desdobra em um universo de artefatos da produção material e
imaterial de artistas e práticas da cultura baiana em que a arte está presente.
A
capoeira é uma das manifestações artísticas do Brasil com marcos históricos
significativos na Bahia. O termo se aplica ao conceito de arte por não ser
apenas luta e jogo, em seu mosaico cultural encontramos a presença das linguagens
artísticas denominadas de dança e música, que tem uma relevância macro nos
atributos da capoeira, principalmente na Capoeira Angola. Neste sentido a
capoeira ganha um aspecto criativo e propriamente artístico.
A relação
da capoeira com a arte não se restringe apenas a dança e a música, quando me
refiro estas duas referências a princípio, proponho uma relação com a Capoeira
Angola, mas de modo geral é possível identificar também a presença da artes
visuais e do teatro na capoeira.
Acredito
numa relação da capoeira com as artes visuais no viés da construção plástica
dos instrumentos musicais, por exemplo, o berimbau em seu contexto pictórico em
que as cores e formas pintadas dão “vida” estética ao instrumento e expõe
visivelmente a oferta de diversidade que a capoeira tem. As artes visuais de
forma bem peculiar tem também esta característica de usar a estética, o visível
para expor a sua mensagem. Seguindo esta ordem de pensamento consigo transpor
uma coisa a outra. O teatro, que é a arte de representar e que compõe as artes
cênicas juntamente com a dança e a arte circense está presente na capoeira pelo
próprio ato cênico desta luta, representando mestres, capoeiristas e o público
espectador. Outra característica teatral na capoeira é o ato da “apelidagem”
dos pratricantes desta arte.
Sendo cultura relacionada à arte,
a capoeira ganha um espaço na sala de aula por meio da arte-educação. O
professor de Arte além de contextualizar a capoeira em seus aspectos
conceituais, históricos, filosóficos e culturais pode agregar também as
práticas de produção da capoeira na escola, promovendo encontros entre alunos e
capoeiristas, ou mesmo internalizando o conhecimento prático e técnico da
capoeira em academias específicas onde às aulas são oferecidas para uma ministração
experimental da prática da capoeira. A compreensão da capoeira na prática é
importante não apenas pela fixação da aprendizagem teórica, mas pela
oportunidade de vivência nesta arte, sendo também para o educando uma
experiência para a vida. Outra abordagem muito importante acontece no momento
da fruição da capoeira, ou seja, a apreciação crítica e reflexiva desta
prática, estimulando a percepção do aluno para cada cena, cada gesto,
expressão, diferenças e semelhanças. Em sala de aula é possível desenvolver
este fruir por meio de mostras de vídeos, apreciação de fotos e tutoriais, numa
situação extraclasse, visitas a escolas de capoeira ou mesmo as rodas ao ar
livre pode ser uma ótima experiência de aprendizagem.
Um dos maiores descasos que temos
no Brasil, especificamente na Bahia é o semi-analfabetismo cultural de grande
parte das pessoas. Numa pequena pesquisa que fiz ano passado e faço todos os
anos nas turmas em que leciono na educação básica, apenas vinte e cinco alunos
de nove turmas com cerca de quarenta a quarenta e cinco discentes cada,
visitaram um museu alguma vez na vida. O que mais me surpreende não é apenas
este lamentável número de pessoas, mas o notável desinteresse por parte dos
alunos em conhecer a arquitetura histórica da cidade, as igrejas de estéticas
barrocas e rococós, os centros culturais, teatros, exposições de artes visuais
nas diversas instituições de cultura e patrimônios materiais e imateriais de um
modo geral. Outra situação é quando perguntamos a alguém da nossa família ou
até mesmo aos nossos amigos “o que é arte para você?” E geralmente as respostas
se restringem a arte como atividade manual, decoração, criatividade e liberdade
apenas, esquecendo a dimensão teórica e cognitiva que a arte tem no sentido da
pesquisa e da busca de sua proposta poética. O senso comum sobre a arte, na
produção artística ou no seu ensino, ainda no Brasil é privatizado à ideia de
inspiração, intuição e rebeldia. Neste sentido, a escola se transforma em uma
plataforma deste senso comum quando o professor de Arte não transmite e nem
respira bem a disciplina no seu ofício, deixando de revelar por sua vez, o real
papel da arte na educação. Outro questionamento curioso é “cite um exemplo de
uma obra de arte” e em muitos casos, de imediato, a resposta vem limitando ser
obra de arte as pinturas e esculturas, marginalizando as letras de músicas, os
poemas e os roteiros de filmes enquanto obras de arte.
O conhecer cultura e arte em sua
essência ainda me parece estar longe da realidade intelectual dos brasileiros,
seja por ignorância ou mesmo pelo desmerecimento ou desprestígio dos cargos que
a cultura e a arte ocupam neste país, e é dever do Poder Público e dos
profissionais do ensino da arte esta transformação social.
O ensino da arte é um recorte do conhecimento
sobre cultura e cabe ao professor de Arte conhecer a cultura relacionada à arte
nos diversos aspectos de sua licenciatura, em artes visuais, música, dança ou
teatro. Se arte-educação significa
epistemologia da arte, as práticas de ensino de cada professor de arte deve
desenvolver uma epistemologia específica de acordo com a sua formação, e é
importante sempre estabelecer relações interdisciplinares com as diversas
linguagens artísticas e as diversas áreas do conhecimento. A disciplina de Arte
tem os seus conteúdos próprios e tem também diversas possibilidades de diálogos
e interfaces com outros campos de aprendizagem. O bom desempenho nas aulas de
Arte dependerá muito mais do professor propositor, do que qualquer outro
personagem pedagógico.
Que se mantenha viva a chama do
coração dos arte-educadores deste país, que acreditam e sonham com mudanças, e
lutemos por esta causa pois ainda há um caminho longo pela frente.
Obrigado pela leitura e até aproxima discussão!